15.5.24

Moore & Jones @ cafe Oto 10.5.2024

Num daqueles momentos de bar inexplicáveis, as pessoas começaram a falar mais baixo, gerando-se aquela dinâmica em que um silêncio arrasta o outro. À espera. À espera da hora. E alguém grita do bar: "keep chatting!" Ainda não há sinais de músicos. Lá fora, no quadro preto de ardósia diz "Moore & Jones" e eu penso que estou a ser perspicaz ao achar que o convidado especial é o John Paul Jones porque está ali o baixo dele, assim como um portátil e dois iPads, exatamente o que ele usou com os Minibus Pimps há uns bons 10 anos aqui nesta mesma sala. Não há dúvidas.
Estamos no intervalo. A dupla maravilha incendiou a memória com explosões sónicas de uma juventude longínqua. O JPJ era um daquela mitos dos rockeiros do Olimpo (e continua a ser) e o Thurston é outra figura desta nossa transcendência dimensional. Ambos fazem parte daquela constelação impossível e ambos sabem que vieram para o ruído e espacialidade sónica. A imagem do JPJ é a mesma, a vacilar entre a maquinaria e o instrumento convencional. Mas agora parece dominar melhor as assimetrias e, ao decalcar diferentes camadas, consegue criar um dilúvio de experimentação. O Moore é um exímio executante de curvaturas muito peculiares. O som da Jaguar é todo dele.
A segunda parte foi ainda mais assombrosa do que a primeira. Começou com o JPJ no piano (um pianista virtuoso, diga-se) para culminar numa típica ginástica de ruídos de Moore (o fantasma de Hendrix paira no ar) e numa inevitável queda no mais profundo devaneio físico. O Moore levanta-se, saca o jack, e experimenta a volúpia da eletricidade. Agora que o concerto acabou, muita gente para la fora, alguma cá dentro, e o JPJ arruma a tralha. Algumas pessoas falam com ele, mas a conversa acaba depressa.



28.4.24

Langham Research Centre + Beatriz Ferreyra @cafeoto 26.4.2024

Noite de eletrónica analógica. Aparelhos científicos e eletro-acústicos a paginar o reencontro após muitos anos considerados obsoletos. Vi os Langham Research Centre há cerca de uma década no Kings Place. Penso que tocaram composições de John Cage com rádios e voz. Lembro-me das máquinas de fita e do uniforme engravatado, uma espécie de cruzamento entre os Beatles e os Kraftwerk. Beatriz Ferreyra fez parte do Groupe de Recherches Musicales (GRM) fundado por Pierre Schaefer, compositor singular no mundo das electrónicas, mais especificamente da música concreta. Para não entrar em profundidades da dicotomia entre a música eletrónica e a música concreta, fiquemos pela abrangente música electro-acústica.

Estava à espera de sintetizadores monstruosos e bobines, mas eram mesas de mistura pequenas, leitores de cassetes e rádios. Isto vai ao encontro das minhas fugas ao aparato, na busca da simplicidade de pequenos aparelhos e sons simples. Agora que o mundo anda num show off de imensos apetrechos, estes, os pioneiros, mostram que isso já passou. Estava curioso com a quantidade de colunas espalhadas pela sala. Espera uma espacialidade minuciosa.

Foram duas peças distintas. A primeira, Ecos, mais curta, foi uma experiência muito Gesang der Junglinge de Stockhausen, com multitudes na espacialidade da sala. A segunda, um pouco mais cinemática, muito design sonora de filme de ficção científica, soou a uma intensa distopia. Ferreyra estava no lugar do técnico de som. Puro controlo de espacialidade sem performance à vista. A dar ideias para outras direções e experiências, muito mais desligadas da realidade. Composições que apenas podem ser experienciadas em lugares assim, abertos.

Os Langham Research Centre deixam tudo no pormenor dos sons mais mundanos e impregnam a paisagem sonora de paragens abruptas com um ritmo de relógio dormente. Seguem uma rota desenhada por John Cage onde as composições apenas gotejam numa pronúncia linear. São cientistas dos sons e dos brinquedos electrónicos. É a música concreta de quem navega e perturba a incandescência da matéria. Entre estas palavras-cruzadas sónicas, reencontro um rumo adormecido: as palavras, a música concreta, a essência das marés.

Há uma estranha dispersão do público a bloquear todas as passagens. Deixam-se ficar parados em trajetos assimilados. Parecem imperturbáveis.

24.3.24

Taku Sugimoto + Angharad Davies + Eyes of the Amaryllis - 20.3.24

Parte 1

Taku Sugimoto e Angharad Davies. Há entre eles um diálogo de minimalismos. Conversa contida. Pausas. Ouve-se um choro de bebé (não é comum ouvir um choro de bebé no café Oto a esta hora) e há um eterno momento de Moondog a figurar no princípio do mundo dos harmónicos. As peculiaridades de Angharad Davies são o complemento fundamental para a paixão evidente de Sugimoto pelos harmónicos. É uma guitarra propícia a sons orgânicos e acústicos. E o silêncio da sala perfura os momentos para nos fazer viajar um pouco. A música improvisada, nestes moldes, transfigura-se na dimensão ambiental que nos faz esquecer o lugar, o espaço, o tempo e a idade. Ficamos por uma pontuação livre, na intensa consciência de que podemos estar perto de uma poesia que não conseguimos ler.

Parte 2


Os Eyes of the Amaryllis foram das coisas mais pegajosas que eu vi no café Oto. Experiências sónicas inconsequentes, uma mistela lamacenta de pretenciosismo artístico. Não foram precisos mais de dois minutos para perceber que nada, mesmo nada, iria sair dali. Nenhum som significativo, nenhum gesto profundo. Simplesmente aquela planície sonora de merdices e figuras de estilo sem estilo.


Parte 3


Tudo parece frágil e vulnerável. Há silêncio, há o ruído do café, há som de copos e da madeira das cadeiras desconchavadas. Taku Sugimoto reduz tudo ao mínimo: trinta minutos de arco numa guitarra parada, dissonâncias, um fio de som que parece sustentar o mundo inteiro e tudo aquilo que não é possível ser dito com palavras.

(Há um pacóvio da outra banda a comer bananas, sentado na cadeira errada, demasiado do lado do "palco")

Parece ser libertador poder tocar guitarra desta forma, sem ansiedade, sem qualquer tentativa de preencher o espaço e as ansiedades dos outros. O silêncio, neste lugar, neste contexto, torna-se o bem fundamental. Sugimoto não procura o alcance especial das dinâmicas, nem os truques dos artistas que querem falar alto. Concentra-se na afinação da guitarra. Esquece o arco electrónico que tinha pousado em cima da cadeira. O set são apenas variações de um arco orgânico, a enternecer os pensamentos fugidios. Mais uma vez vem a ideia da música improvisada a diluir-se no éter, transfigurada na música ambiental mais pura, desintegrando-se aos poucos para um final imprevisível. Parece que se desligaram as luzes. Tão somente isso.

12.3.24

Rafael Anton Irisarri + Gibrana Cervantes @ Cafe Oto 11.03.2024

Eu não sei se comungo na mesma paróquia dos ambientalistas do ruído. As camadas sobrepõem-se umas às outras numa espécie de feedback de loop lento e culminam invariavelmente na apoteose da densidade onde as frequências se excitam umas às outras. Há nisto uma pretensa exploração da "fisicalidade" do som que nos faz experienciar frequências com o corpo. Todo o esqueleto vibra com dois ampegs acesos e a falta de direção das frequências mais graves deixa-nos à deriva, naquele estado de terror sónico de uma explosão contínua. A guitarra transfigura-se com um arco, mas estas paisagens não são plácidas. Há um desequilíbrio de medo e uma óbvia ausência de referências. O pior disto são as âncoras. É que a partir de uma certa altura, não existe forma de mudar a direção inventiva. A única solução é terminar no ponto em que se começa a descida lenta. Depois, quando o terramoto chega ao fim, não existe um paraíso. Sabemos que regressa. O mesmo epicentro e a mesma não-musicalidade de sempre. Se isto é o lado negro desta textura, então dêem-me a lentidão do Eno e os pormenores do Budd. Eu gostava de ver mais vulnerabilidade no palco. Esta tendência para a proteção sónica é somente uma sobreposição digna de contrariedade. No final, o improviso deixa um travo de vazio entre o Irisarri e a Cervantes.

21.1.24

Frith + SSS - 21.1.24

Foi um concerto muito interessante, bem melhor do que eu esperava. Ao princípio estava convencido que o Frith não era um guitarrista de silêncios, a sua exploração passa essencialmente por dinâmicas, e que isto poderia condicionar a performance da Susana Santos Silva, mas a partir da meia hora eles foram muito mais peculiares na criação de espaços e tudo se tornou um jogo maior. São imensos anos na exploração das possibilidades da guitarra e parece-me que esta distância de idades entre os músicos se torna uma nova essência dessa dinâmica.

13.1.24

Grubbs / Reidy / Werner -13.1.2024

A primeira parte da noite foi da (ou do?) Jules Reidy (lê-se reedy) a solo numa guitarra de 12 cordas com algum processamento de harmónica e voz, e de Werner e Grubbs em duo, numa peça que começou com voz recitada e eletrónica e acabou com guitarra elétrica. Nota-se que são bons músicos. A Reidy sabe quando não inventar e sabe quando tem de dar a intensidade certa na combinação de guitarra e eletrónica. Dos outros dá para perceber a apropriação e manipulação de voz e piano com um toque subtil de quem sabe. Fiquei a saber que o Werner é dos Mouse on Mars, mas ouvi sobretudo os Gastr Del Sol do Grubbs. 

Penso que o trio não foi tão interessante como os sets a solo ou em duo. Aliás, o conflito entre três músicos tão díspares, parece ter criado aquele tipo de tensão vulgar no âmbito da música improvisada, no qual não se criam espaços e dinâmicas voluptuosas. Não são os músicos do clímax do improviso, mas também não são os exímios das minudências e das figurações mágicas. Perdi-me durante o trio. Andei a divagar. Não consegui distinguir as diferentes energias que emergiam no traço contínuo entre as guitarras e, com alguma pena, perdi a memória do momento. Era também o fim da noite e pensamentos embriagados pelos perfumes demasiado doces. Houve alturas em que preferi escutar a música num cenário imaginário, num universo paralelo que não acontece. Mas foi interessante ver o Grubbs ao vivo e perceber o contexto da música da Reidy. As electrónicas do Werner também pareciam interessantes, mesmo com as manipulações abruptas de voz cantada ao telemóvel.



20.12.23

Lankum

Ao entrar na mítica Roundhouse, uma sala que poucas vezes frequentei ao longo dos anos, lembro-me da primeira e última vez que estive presente num concerto dos Swans. Nesse dia, escrevi que raramente existia uma batida ou uma linha fecunda com trajetória. Havia naquele espaço (diga-se, de acústica confrangedora, tal como todos os espaços redondos) uma imensidão de ruído. Eram camadas sonoras espessas e densas a agitar os corpos por dentro e por fora. Era impossível escutar todo o universo que acontecia debaixo da maré de ondas gigantes e da espuma. Era música para o corpo - espasmos, tremores, vibrações de pele - e para a mente. E Michael Gira era o estereótipo do frontman, a personificação do êxtase de ruído, a catarse, o corpo elétrico num palco de deuses imaginários.

No ano anterior a este concerto dos Swans na Roundhouse, vi Michael Gira a solo num concerto curado por William Basinski na igreja St. John, em Hackney, e que tocou nessa mesma noite. Assim sendo, vi Michael Gira pela primeira vez a solo numa igreja e um ano depois com os Swans na Roundhouse. Devo dizer que Gira não deixa de ser mais intenso apenas com uma guitarra acústica. Descrevi-o como um atroz vilão que tortura a voz e agride a guitarra acústica ou, pelo menos, agride a forma convencional de esta ser tocada. Quer num cenário (solo), quer noutro (banda), Gira era o mesmo poço de emoções profundas, obscuras, em explosões vulcânicas de meter respeito, para não dizer medo. Que o diga o técnico de som. Num momento de catarse artística, parou de tocar a meio de uma música para vociferar no tom cavernoso que lhe é próprio, dizendo que o som no palco não estava suficientemente alto. Disse qualquer coisa do género: “eu não quero saber se está alto aí para o público, mas aqui o som tem de estar suficientemente alto para eu o sentir nas vísceras”. Digamos que não disse isto de uma forma muito amigável.

Não existe despropósito algum nestas memórias para começar a escrever sobre os dublinenses Lankum. Embora não exista neles o culto do frontman (são um verdadeiro coletivo a quatro vozes), existe neles a mesma dinâmica que faz oscilar a canção entre o acústico e o elétrico, seja em passagens de puro tradicionalismo folk, seja em monumentais passagens de tapeçaria sónica, para culminar nos elementos fundamentais que os unem aos Swans/Gira: o drone, a repetição, a dicotomia entre o caos e a canção pura. Abriram com "The Wild Rover" deixando detritos cósmicos para um cenário de negritudes, histórias de assassínios e suicídios, para culminar na mais sublime peça da noite, "Go Dig My Grave". Em ambas, Radie Peat é a sereia de voz áspera a comandar as tempestades furiosas das palavras. São as dissonâncias das cordas da apoteose sónica (sirenes de nevoeiro de um universo não só habitado pelos Swans, mas também por Scott Walker), as marchas fúnebres da percussão mais grave, repetidas até ao infinito, à qual se acrescenta o martelar das cordas de piano, que elevam a narrativa folk irlandesa. E há ainda o enlevo de um harmónio, um instrumento perigosamente próximo do cruzamento de uma caixa de música com um pequeno caixão. Entre estas duas composições, abre-se um livro de violência ("The New York Trader"), de humanismo cuja vela se acende pelas almas palestinianas ("The Young People"), e de ressacas profundas, ao ponto de se tornarem filosóficas ("On a Monday Morning"). E se "Lullaby" foi dedicada a Sinead O’Connor, um concerto em Londres, uma semana depois da morte de Shane MacGowan, teria de ser pontuado pela versão de "The Old Main Drag" dos Pogues. Depois de um final apoteótico com "Bear Creek", apenas faltaram duas músicas que teriam ficado a matar (passe a expressão) neste alinhamento: a balada mais profunda do último disco False Lankum, "Newcastle", e a música que deveria ser sempre obrigatória para fechar qualquer concerto deste calibre, "Hunting the Wren".

The Wild Rover
The New York Trader
The Young People
Rocky Road to Dublin
The Pride of Petravore
On a Monday Morning
Lullaby
Go Dig My Grave

Encore:
Cold Old Fire
The Old Main Drag
Bear Creek

Da mesma forma que os Pogues elevaram a música irlandesa através da veia punk de finais dos anos 1970, processo de infusão cujo marinheiro-mor, Shane MacGowan, foi a estrela de uma galáxia longínqua de escritores e poetas, os Lankum são os poetas da nova era, os marinheiros que mergulham nas profundezas mais negras em busca de um traço de luz, para trazerem à superfície o maior enigma de todos: de onde vem tudo isto? Crê-se (isto é sobretudo uma crença) que tudo vem da mesma ferida aberta. Ou seja, do âmago da música folk cantada ao longo de uma eternidade de anos, uma tradição que também é punk (já nela existiam os elementos políticos, de revolta, de caos dionisíaco), drone (as gaitas irlandesas, a sanfona!) e pura poesia.