Ao entrar na mítica Roundhouse, uma sala que poucas vezes frequentei ao longo dos anos, lembro-me da primeira e última vez que estive presente num concerto dos Swans. Nesse dia, escrevi que raramente existia uma batida ou uma linha fecunda com trajetória. Havia naquele espaço (diga-se, de acústica confrangedora, tal como todos os espaços redondos) uma imensidão de ruído. Eram camadas sonoras espessas e densas a agitar os corpos por dentro e por fora. Era impossível escutar todo o universo que acontecia debaixo da maré de ondas gigantes e da espuma. Era música para o corpo - espasmos, tremores, vibrações de pele - e para a mente. E Michael Gira era o estereótipo do frontman, a personificação do êxtase de ruído, a catarse, o corpo elétrico num palco de deuses imaginários.
No ano anterior a este concerto dos Swans na Roundhouse, vi Michael Gira a solo num concerto curado por William Basinski na igreja St. John, em Hackney, e que tocou nessa mesma noite. Assim sendo, vi Michael Gira pela primeira vez a solo numa igreja e um ano depois com os Swans na Roundhouse. Devo dizer que Gira não deixa de ser mais intenso apenas com uma guitarra acústica. Descrevi-o como um atroz vilão que tortura a voz e agride a guitarra acústica ou, pelo menos, agride a forma convencional de esta ser tocada. Quer num cenário (solo), quer noutro (banda), Gira era o mesmo poço de emoções profundas, obscuras, em explosões vulcânicas de meter respeito, para não dizer medo. Que o diga o técnico de som. Num momento de catarse artística, parou de tocar a meio de uma música para vociferar no tom cavernoso que lhe é próprio, dizendo que o som no palco não estava suficientemente alto. Disse qualquer coisa do género: “eu não quero saber se está alto aí para o público, mas aqui o som tem de estar suficientemente alto para eu o sentir nas vísceras”. Digamos que não disse isto de uma forma muito amigável.
Não existe despropósito algum nestas memórias para começar a escrever sobre os dublinenses Lankum. Embora não exista neles o culto do frontman (são um verdadeiro coletivo a quatro vozes), existe neles a mesma dinâmica que faz oscilar a canção entre o acústico e o elétrico, seja em passagens de puro tradicionalismo folk, seja em monumentais passagens de tapeçaria sónica, para culminar nos elementos fundamentais que os unem aos Swans/Gira: o drone, a repetição, a dicotomia entre o caos e a canção pura. Abriram com "The Wild Rover" deixando detritos cósmicos para um cenário de negritudes, histórias de assassínios e suicídios, para culminar na mais sublime peça da noite, "Go Dig My Grave". Em ambas, Radie Peat é a sereia de voz áspera a comandar as tempestades furiosas das palavras. São as dissonâncias das cordas da apoteose sónica (sirenes de nevoeiro de um universo não só habitado pelos Swans, mas também por Scott Walker), as marchas fúnebres da percussão mais grave, repetidas até ao infinito, à qual se acrescenta o martelar das cordas de piano, que elevam a narrativa folk irlandesa. E há ainda o enlevo de um harmónio, um instrumento perigosamente próximo do cruzamento de uma caixa de música com um pequeno caixão. Entre estas duas composições, abre-se um livro de violência ("The New York Trader"), de humanismo cuja vela se acende pelas almas palestinianas ("The Young People"), e de ressacas profundas, ao ponto de se tornarem filosóficas ("On a Monday Morning"). E se "Lullaby" foi dedicada a Sinead O’Connor, um concerto em Londres, uma semana depois da morte de Shane MacGowan, teria de ser pontuado pela versão de "The Old Main Drag" dos Pogues. Depois de um final apoteótico com "Bear Creek", apenas faltaram duas músicas que teriam ficado a matar (passe a expressão) neste alinhamento: a balada mais profunda do último disco False Lankum, "Newcastle", e a música que deveria ser sempre obrigatória para fechar qualquer concerto deste calibre, "Hunting the Wren".
The Wild Rover
The New York Trader
The Young People
Rocky Road to Dublin
The Pride of Petravore
On a Monday Morning
Lullaby
Go Dig My Grave
Encore:
Cold Old Fire
The Old Main Drag
Bear Creek
Da mesma forma que os Pogues elevaram a música irlandesa através da veia punk de finais dos anos 1970, processo de infusão cujo marinheiro-mor, Shane MacGowan, foi a estrela de uma galáxia longínqua de escritores e poetas, os Lankum são os poetas da nova era, os marinheiros que mergulham nas profundezas mais negras em busca de um traço de luz, para trazerem à superfície o maior enigma de todos: de onde vem tudo isto? Crê-se (isto é sobretudo uma crença) que tudo vem da mesma ferida aberta. Ou seja, do âmago da música folk cantada ao longo de uma eternidade de anos, uma tradição que também é punk (já nela existiam os elementos políticos, de revolta, de caos dionisíaco), drone (as gaitas irlandesas, a sanfona!) e pura poesia.

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